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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    O Sagrado Direito da Liberdade:escravido, liberdade e abolicionismo em

    Ouro Preto e Mariana (1871 a 1888).

    DISSERTAO DE MESTRADO

    LUIZ GUSTAVO SANTOS COTA

    JUIZ DE FORA2007

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    II

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    O Sagrado Direito da Liberdade:escravido, liberdade e abolicionismo em

    Ouro Preto e Mariana (1871 a 1888).

    Dissertao de mestrado apresentadaao Programa de Ps-Graduao emHistria da Universidade Federal deJuiz de Fora como requisito parcial obteno do ttulo de mestre emHistria por Luiz Gustavo SantosCota.

    Linha de pesquisa: Narrativas,Imagens e Sociabilidades.

    Orientadora: Profa. Dra. SilvanaMota Barbosa.

    JUIZ DE FORA2007

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    III

    Dissertao defendida e aprovada em 19 de dezembro de 2007, pela banca constitudapor:

    __________________________________________Presidente: Prof. Dr. Alexandre Mansur Barata (UFJF)

    __________________________________________Titular: Profa. Dra. Keila Grinberg (UNIRIO)

    __________________________________________Orientadora: Profa. Dra. Silvana Mota Barbosa (UFJF)

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    IV

    O sentimento de ser a ltimanao de escravos humilhava anossa altivez e emulao de pasnovo.

    Joaquim NabucoMinha Formao

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    V

    Aos que mais amo neste mundo,Maria das Graas, Luiz Gregrio, Sara e Celzia.

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    VI

    AGRADECIMENTOS

    A todos vocs, que eu amei e que euamo, cones guardados num corao-caverna, como quem num banquete

    ergue a taa e celebra, repleto de versoslevanto meu crnio.A Flauta VertebradaVladimir Maiakovski

    Sempre gostei de ler agradecimentos. Mesmo quando tenho certa urgncia em

    iniciar a leitura de uma obra acadmica, acabo dando um jeitinho de dar uma olhada nas

    palavras que os autores dedicam queles que de alguma forma colaboraram para a

    materializao de seu trabalho. nesse trecho da obra, que podemos constatar que um

    trabalho de pesquisa, muitas vezes desenvolvido durante anos, no construdo de

    forma solitria. As orientaes, dilogos e ensinamentos absorvidos na academia, bem

    como o carinho, as palavras de incentivo e os diversos tipos de auxilio prestados por

    todos aqueles que cercam o autor, so parte integrante de sua obra. Evidentemente que o

    mesmo aconteceu comigo.

    Chegar at aqui no foi fcil. Voc pode at pensar, ora, todo mundo diz isso,

    mas acredite, no foi fcil mesmo, e por uma srie quase inumervel de razes. Foram

    muitas viagens de nibus (muitas vezes lotado), caronas, noites sem sono, noites com

    sono e que eu no podia dormir, dores de cabea (essas foram muitas mesmo...), dvida,receio, tristeza, inrcia, saudade, miojos, falta de recursos, e por a vai... Mas

    sempre tive a sorte e o privilgio de contar com pessoas que, mesmo sem saber,

    injetaram em mim o nimo necessrio para seguir em frente, mesmo com a insistente

    dor de cabea.

    Primeiramente, devo minha orientadora, a Profa. Dra. Silvana Mota Barbosa,

    um muito obrigado do tamanho do mundo. Ela acreditou em mim e no meu projeto de

    dissertao desde o primeiro dia em que conversamos. Muitas vezes, sua animao em

    relao pesquisa parecia maior que a minha, mostrando-me que eu no precisava serto pessimista. Paciente, compreensiva e amiga, soube ser rigorosa quando necessrio,

    ou melhor, quando eu mereci. Muito obrigado!

    Aos professores Drs. Alexandre Mansur Barata e Cludia Andrade dos Santos,

    agradeo a prestimosa participao no exame de qualificao, ocasio em que deles

    recebi inmeras e valiosas contribuies para o trabalho. Ainda ao Prof. Alexandre

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    VII

    agradeo os puxes de orelha em relao aos meus barroquismos e tambm sua

    dedicao enquanto esteve frente da coordenao do Programa de Ps-Graduao em

    Histria da UFJF.

    Agradeo Profa. Dra. Keila Grinberg o privilgio de poder contar com sua

    presena na banca de defesa.O perodo que passei na cidade de Juiz de Fora foi incrivelmente proveitoso. L

    fiz novas e boas amizades, alm de ter fortalecido antigas; e cresci muito enquanto

    historiador. Nesse sentido, devo um agradecimento especial s Profas. Drs. Cludia

    Viscardi, Beatriz Domingues, Snia Lino e Cludia Andrade dos Santos que

    generosamente dividiram comigo e meus colegas seus conhecimentos e experincia.

    Aos meus colegas agradeo as discusses em sala, os papos na cantina e a farra durante

    o XXIII Simpsio Nacional de Histria em Londrina. Entre eles, dedico um

    agradecimento especial ao meu amigo Jos Gaspar Bisco Jnior, com quem eu dividi omesmo teto desde os tempos de Repblica Anarquia no ICHS/UFOP. Gaspar, que aturo

    praticamente 06 anos, um de meus amigos mais queridos e com ele enfrentei

    algumas aventuras tambm no mestrado.

    Falando em velhos amigos e colegas de ofcio, devo um agradecimento aos

    historiadores Andr Luiz Mantovani e Fabiano Gomes da Silva. A esses dois tributo no

    s minha gratido, mas tambm uma profunda admirao e respeito. Mesmo longe e

    assoberbados com suas prprias pesquisas, meus amigos Mano e Baiano, sempre

    responderam aos meus pedidos de socorro prestando observaes e conselhos sempre

    pertinentes.

    No posso deixar de agradecer aos meus mestres do tempo de graduao no

    ICHS/UFOP. Especialmente Helena Miranda Mollo, Andra Lisly Gonalves, Rosana

    Areal de Carvalho, Renato Pinto Venncio e lvaro de Arajo Antunes, que me

    ensinaram os caminhos do ofcio de dar voz aos mortos. Muito obrigado.

    Agradeo, e muito, ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFJF que me

    concedeu uma bolsa de estudos durante um ano e sem a qual esta caminhada teria sido

    quase impossvel.

    Tenho gratido e admirao pelos funcionrios das instituies arquivsticas

    onde pesquisei. Tendo sempre que enfrentar inmeros problemas, j que este um pas

    que ainda no d a devida importncia sua memria, essas pessoas cuidam de um

    patrimnio inestimvel com dedicao e responsabilidade, mesmo com toda a sorte de

    problemas. Deixo aqui meu muito obrigado e um abrao especial ao Cssio e o Sr. Jos

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    VIII

    da Fonseca do Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana; ao meu xar

    Gustavo Ferraz, Aline, Sr. Jairo e Clio da Hemeroteca Pblica do Estado de Minas

    Gerais. Os inmeros e divertidos papos que tive com essas pessoas muitas vezes

    ajudaram a suportar a dura rotina de pesquisa.

    Nas minhas andanas por Minas Gerais fui calorosamente acolhido sempre queprecisei de um pouso. Aos filhos de Lula, Carlos Medeiros, Carlos Rodrigo e Vera,

    agradeo a hospitalidade e o bom humor durante todo o tempo que permaneci em Belo

    Horizonte. Aos amigos da extinta e saudosa Repblica Anarquia, em especial ao

    Sossegado e Marcelo, agradeo por sempre abrirem as portas de minha antiga morada.

    Aos meus familiares agradeo todo o apoio que sempre me devotaram.

    Agradeo especialmente s tias Lela e Dra com quem tenho convivido bastante nos

    ltimos tempos e que tem sempre procurado me confortar quando estou beira de uma

    crise de nervos. Tambm agradeo tia Marise que junto com aquelas me ajudou apagar um curso de ingls para que pudesse prestar a seleo do mestrado. Nunca

    esquecerei disso.

    Por fim, mas no menos importante, tenho que agradecer queles a quem dedico

    este trabalho. Meus pais, Maria das Graas e Luiz Gregrio, minha irm Sara e minha

    namorada Celzia, so os meus pilares de sustentao.

    Minha me sem dvida minha maior incentivadora. Sempre disposta a

    compreender e apoiar minhas escolhas, no pensa duas vezes em pedir aos seus santos

    que intercedam por seu filho insone e cercado de um amontoado confuso de papis e

    livros. Mesmo quando no entende nada do que eu falo se esfora para eu deixe o

    pessimismo de lado e olhe pra frente.

    Meu pai, que, vez por outra, demonstra certa impacincia, natural verdade, de

    ver o filho trabalhando, me dando choques de realidade o tempo todo, nunca deixou

    que eu desistisse de um sonho, me ajudando material e principalmente moralmente

    sempre que dele precisei.

    Com minha irm, divido, alm dos laos de sangue, o gosto pela produo do

    conhecimento. Mesmo pertencendo a reas completamente distintas, Biomedicina e

    Histria, temos a mesma vontade, a mesma paixo pela cincia. Sem saber, ela sempre

    me enche de nimo toda vez que se senta ao meu lado para saber como anda minha

    pesquisa ou para contar as idias que tem em mente.

    Por derradeiro, Celzia tem responsabilidade direta na materializao deste

    trabalho. Quando seu namorado pessimista pensou em desistir da seleo do mestrado

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    IX

    tratou de demov-lo da idia, ajudando-o a estudar e at mesmo levando almoo do

    Restaurante Universitrio quando no podia abandonar os livros. Alm de agradecer a

    todo carinho e dedicao que a tambm colega de ofcio me devota h mais de cinco

    anos, tenho que pedir-lhe perdo pelo longo perodo de ausncia e isolamento. No tem

    sido fcil encarar uma distncia de mais de trezentos quilmetros e as altas taxastelefnicas, mas como disse meu amigo Maiakovski, no acabaro com o amor, nem as

    rusgas, nem a distncia, e por isso te amo firme, fiel e verdadeiramente.

    A todos vocs meus amigos, um muito obrigado e aquele abrao!

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    X

    Resumo

    O presente trabalho tem como objeto o estudo do movimento antiescravista nas

    cidades mineiras de Ouro Preto e Mariana. Atravs de jornais, relatos de poca e

    processos judiciais tentou-se perceber como se desenrolou a luta pelo fim da escravido

    nessas duas importantes cidades da ento provncia de Minas Gerais, no perodo entre a

    promulgao da chamada Lei do Ventre Livre (1871) e a abolio (1888). As primeiras

    reaes ao processo de emancipao gradual, desencadeado em 1871; a promoo de

    alforrias; os debates travados atravs da imprensa; a criao de sociedades e jornaisabolicionistas; as manifestaes pblicas contra o regime escravista; a participao do

    clero diocesano; a radicalizao de parte do movimento abolicionista; alm da ao dos

    prprios escravos que chegaram a recorrer Justia em busca da liberdade; so alguns

    dos elementos observados nesta dissertao.

    Palavras-chave: Abolicionismo, escravido, liberdade, Minas Gerais.

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    XI

    Abstract

    The present work has as object the study of the movement anti-slavery in the

    cities of Ouro Preto and Mariana, Minas Gerais. Through newspapers, time reports and

    lawsuits tried to notice as the fight was uncoiled then by the end of the slavery in those

    two important cities of the province of Minas Gerais, in the period among the

    promulgation of the call Lei do Ventre Livre (1871) and the abolition (1888). The first

    reactions to the process of gradual emancipation, unchained in 1871; the promotion ofenfranchisements; the debates locked through the press; the creation of societies and

    abolitionist newspapers; the public manifestations against the slavery regime; the

    participation of the clergy; the radicalization of part of the abolitionist movement;

    besides the own slaves' action that got to appeal to the Justice in search of the freedom;

    they are some of the elements observed in this dissertation.

    Key Words: Abolitionism, slavery, freedom, Minas Gerais.

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    XII

    Sumrio

    Lista de abreviaturas e siglas......................................................................................... XIII

    Lista de mapas, fotografias e ilustraes....................................................................... XIV

    Lista de grficos e quadros............................................................................................. XV

    Introduo.......................................................................................................................

    A Rota 13 de Maio: o abolicionismo na historiografia brasileira e mineira.........

    01

    03

    Captulo 1 - O palco, os cenrios, todo o elenco e o incio da histria.........................1.1 - O que h entre as montanhas? O palco e os cenrios...................................1.2 - Do prlogo ao: as primeiras reaes acerca do processo deemancipao.............................................................................................................

    2626

    44

    Captulo 2 - Uma onda entre as montanhas: crtica escravido e movimentoabolicionista....................................................................................................................

    2.1 - A subida da onda abolicionista......................................................................2.2 - A petulncia estudantil................................................................................2.3 - F, poder e abolio em Mariana...................................................................2.4 - Prximo de um eplogo inesperado: os fugidos se escondem na capital......

    6363

    103110131

    Captulo 3 - Por trs da legalidade tambm h luta: abolicionistas e escravos nasaes de liberdade..........................................................................................................

    3.1 - O Direito, a Justia e a luta pelo fim da escravido.......................................3.2 - Nos caminhos da lei.......................................................................................3.3 - Os homens da lei e a abolio.........................................................................

    136136145180

    Eplogo...........................................................................................................................Ave Libertas.............................................................................................................

    217217

    Fontes Primrias............................................................................................................ 221Referncias Bibliogrficas............................................................................................ 228

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    XIII

    Lista de abreviaturas e siglas

    AEAM - Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana

    AHCC - Arquivo Histrico da Casa dos Contos (Ouro Preto)

    AHCMM - Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana

    AHCP - Arquivo Histrico da Casa do Pilar (Ouro Preto)

    AHCS - Arquivo Histrico da Casa Setecentista (Mariana)

    BN - Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)

    EFOP - Escola de Farmcia de Ouro Preto

    EMOP - Escola de Minas de Ouro Preto

    FDSP - Faculdade de Direito de So Paulo

    HPEMG - Hemeroteca Pblica do Estado de Minas Gerais (Belo Horizonte)

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    XIV

    Lista de mapas, fotografias e ilustraes

    Mapa 01: Regio de Ouro Preto e Mariana na segunda metade do sculo XIX............... 40

    Fotografia 01: Primeira pgina dos jornais abolicionistas O Trabalho e A Vela doJangadeiro........................................................................................................................ 84

    Mapa 02: Planta da cidade de Ouro Preto com destaque para o trajeto da passeataabolicionista ocorrida em 25 de maro de 1884................................................................ 92

    Fotografia 02: Vista panormica da Praa Tiradentes..................................................... 93

    Ilustrao 01: Pintura a leo da primeira sede da Escola de Minas, de autoria de H.Esteves................................................................................................................................ 108

    Fotografia 03:Capela de Nossa Senhora das Mercs nos dias atuais.............................. 121

    Fotografia 04: Nossa Senhora das Mercs........................................................................ 122

    Mapa 03: Mariana entre 1800 e 1920............................................................................... 125

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    XV

    Lista de grficos e quadros

    Grfico 01: Aes de liberdade entre 1871 e 1888 Mariana e Ouro Preto......... 172

    Quadro 01: Argumentos utilizados nos processos judiciais.................................... 179

    Quadro 02: Advogados atuantes nas aes de liberdade dos tribunais de OuroPreto e Mariana entre 1871 e 1888......................................................................... 190

    Quadro 03: Nome e desempenho dos advogados atuantes em cinco ou mais

    processos.................................................................................................................. 191

    Quadro 04: Advogados envolvidos nas aes de liberdade de trfico ilegal.......... 210

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    INTRODUO

    Treze de maio de 1888. A notcia da assinatura de um decreto pela Princesa

    Regente do Imprio fazia com que os sinos das igrejas e o povo nas ruas da ainda jovemnao anunciassem a liberdade. As estrondosas exploses de fogos de artifcio e os

    repiques dos sinos se misturavam com os gritos de viva liberdade e princesa

    redentora que ecoavam pelas ruas do Imprio naquele dia, e nos que se seguiram,

    anunciando a promulgao do decreto salvador. Chegava ao fim a escravido no

    Brasil. Era o fim de um tortuoso caminho percorrido ao longo de mais de trezentos

    anos. Uma rota percorrida por escravos, senhores, libertos, livres pobres, quilombolas,

    polticos, intelectuais e monarcas.

    At o fim desse caminho, bem longo por sinal, e que ganhou contornos mais

    definidos em fins do sculo XIX, no foram poucos os obstculos encontrados. Como j

    foi dito, a rota da abolio no foi pouco tortuosa. At a festa do 13 de maio de 1888,

    uma emaranhada teia de discusses e projetos sobre a extino da escravido em terras

    brasileiras foi sendo fiada ao longo do caminho. Desde os primeiros passos

    independentes da nao at os ltimos suspiros do trabalho escravo, foram apresentados

    inmeros argumentos pr e contra a emancipao dos escravos. 1

    Para muitos, o estabelecimento de um processo gradual que assegurasse os

    direitos dos proprietrios e a manuteno da economia nacional, era um fator decisivo.

    A emancipao imediata traria consigo efeitos desastrosos como o desrespeito

    propriedade privada, a quebra da ordem pblica, causada pelas hordas de ex-escravos

    entregues ao cio e ao crime, bem como a completa runa da economia nacional.

    Inmeros integrantes do diminuto crculo intelectual e poltico do Brasil Imperial,

    adeptos da soluo emancipacionista, sustentaram a argumentao de que o fim

    imediato da escravido representava um perigo ao pas. Apenas atravs de um processo

    gradual, sem um prazo bem delimitado, e controlado pelo Estado, que a transio ao

    trabalho livre poderia ser feita com sucesso. O influente poltico e jurisconsulto mineiro

    1Figuras como Jos Bonifcio de Andrada e Silva, Joo Severiano Maciel da Costa, Jos Eloy Pessoa daSilva e Frederico Csar Burlamaque desenvolveram argumentos favorveis emancipao cativa deforma gradual ainda no contexto do ps-independncia. Para a chamada gerao da independncia, aescravido era um dos temas centrais na formao nacional. Veja: ANDRADA E SILVA, Jos Bonifciode, 1763-1838. Jos Bonifcio de Andrada e Silva. Organizao e introduo de Jorge Caldeira. SoPaulo: Ed. 34, 2002. & ROCHA, Antonio Penalves. Idias antiescravistas da Ilustrao na sociedadeescravista brasileira. In:Revista Brasileira de Histria. vol.20 n.39 So Paulo, 2000.

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    Agostinho Marques Perdigo Malheiro, teceu argumento semelhante na ocasio da

    promulgao da Lei do Ventre Livre em 1871, votando contra o projeto. 2 A

    preocupao era grande, pois, afinal de contas, o carro chefe da economia do ltimo

    bastio da escravatura no mundo ocidental, a agro-exportao, sustentava-se ainda s

    custas do suor cativo.Aquele que transpirava pela escravido tambm poderia ser o mesmo que traria

    a runa ao pas. Os brbaros negros arrancados da frica representavam aos olhos de

    inmeros intelectuais e polticos do Brasil oitocentista uma ameaa clara ao futuro da

    nao. Tidos vrias vezes como seres abjetos e inferiores, biolgica e moralmente, em

    relao aos civilizados europeus, os negros, escravos ou livres, irradiariam um conjunto

    perigoso de influncias negativas a uma nao que pretendia trilhar os caminhos da

    civilizao. Uma das solues apontadas para eliminar esse entrave seria a substituio

    ou a mescla desses brbaros com homens civilizados importados do velho mundo. 3Masos brbaros tambm se mexiam.

    O longo caminho trilhado pelo sistema escravista brasileiro foi permeado pela

    ao de milhares de homens e mulheres que resistiram das mais variadas formas ao

    cativeiro. Violncia, fugas, adaptao, resistncia cultural e negociao foram as armas

    utilizadas. Os escravos, a parte mais interessada na caminhada rumo ao fim da

    escravido, tambm souberam agir a seu favor lutando de forma significativa por sua

    liberdade at o ltimo instante. 4

    Quase ao fim da caminhada, surgiu aquele que foi considerado o movimento

    social mais marcante do sculo XIX. O movimento abolicionista marcou a

    intensificao dos debates acerca do fim da escravido, levando-os para fora das

    tribunas parlamentares, das reunies de salo e pginas de jornal. A abolio ganhava as

    ruas onde os abolicionistas promoviam seus meetings, ocasio em que proferiam

    discursos contra aquele sistema nefasto, totalmente contrrio s luzes do sculo e

    2 Veja: PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial jurisconsultos, escravido e a lei de 1871.

    Campinas: Editora da Unicamp/Centro de Pesquisa em Histria Social da Cultura, 2001.3Durante todo o Imprio, a discusso sobre a introduo do trabalho livre europeu ocupou um lugar deconsidervel importncia. Para muitos polticos, o influxo de trabalhadores vindos do velho continentepossibilitaria a conformao completa da nao. A substituio da mo-de-obra nacional ou sua misturacom o elemento europeu poderia trazer resultados benficos para a escalada evolutiva do pas. Sobre asprimeiras experincias de introduo de trabalhadores europeus no sculo XIX veja: LAMOUNIER,Maria Lcia.Da escravido ao trabalho livre, So Paulo: Papiros, 1988; ALENCASTRO, Luiz Felipe de,Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In:Histria da vida privada no Brasil: Imprio: a corte e amodernidade nacional, So Paulo, Companhia das Letras, 1997.4 AZEVEDO, Clia Maria Marinho. Onda Negra, Medo Branco: O negro no imaginrio das elites Sculo XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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    aos seus ideais de progresso. Provavelmente, tais palavras ecoaram at os ouvidos e

    mentes dos transeuntes, entre eles escravos, que assistiam a tais manifestaes.

    O objetivo deste trabalho exatamente observar o desenrolar desse processo em

    duas importantes cidades da Minas Gerais oitocentista: a episcopal Mariana e a capital

    Ouro Preto. Tema ainda pouco explorado na regio, o abolicionismo em Minas Geraisfoi interpretado por alguns autores como um processo pautado por aes tmidas,

    legalistas e paternalistas, fruto dos costumes dos habitantes das alterosas ou da

    importncia que o regime de trabalho compulsrio ainda tinha para sua economia. A

    pesquisa que lhes apresentada tambm procurou matizar o processo de abolio

    mineiro verificando as teses descritas acima, e que sero comentadas com o detalhe

    mais frente, revelando o contedo dos debates e aes empreendidas pelos atores

    desse enredo, procurando dessa forma preencher lacunas ainda existentes acerca de um

    episdio importante da histria do pas e de Minas Gerais.Todavia, antes que a histria comece a ser contada, ou melhor, interpretada,

    peo licena para lhes conduzir pelo variado caminho traado pela historiografia

    brasileira sobre o tema em questo que, assim como a atuao do abolicionismo e seu

    contato com os tais transeuntes, seguiu em direes bem variadas. De um movimento

    meramente elitista a responsvel por agitaes populares, as interpretaes elaboradas

    pelos historiadores sobre o abolicionismo durante os ltimos 30 anos, apontam para

    uma multiplicidade de atuaes dos antiescravistas nas ltimas dcadas do XIX. Creio

    que esta visita ao variado caminho traado pela historiografia, sendo que faz parte de

    nosso itinerrio uma visita ao ainda curto caminho traado pela historiografia mineira

    sobre a abolio, colaborar para que possamos compreender melhor os

    desdobramentos do processo histrico em questo.

    Rota 13 de maio: o abolicionismo na historiografia brasileira e mineira

    Um negcio de brancos para brancos. Esta foi a definio com que parte da

    historiografia sobre escravido e sua abolio no Brasil, pelo menos at a dcada de

    1970, identificava o abolicionismo. Para os autores ligados chamada Escola

    Sociolgica Paulista, o movimento abolicionista representava os interesses da diminuta

    elite branca e ilustrada, nascida principalmente a partir das camadas mdias citadinas na

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    segunda metade do XIX. 5De acordo com Emlia Viotti da Costa, o crescimento das

    cidades e das profisses liberais teria sido um fator decisivo para que o abolicionismo

    despontasse na dcada de 1880. Assim, a uma camada nova menos comprometida com

    a escravido formaria a base do movimento abolicionista, entretanto, sua adeso no

    teria significado a inteno de modificar a estrutura social vigente, mas sim mant-la.6

    O abolicionismo seria ento um movimento de brancos visando apenas a

    resoluo de seus prprios problemas, entre eles a transio para a economia

    capitalista, a generalizao da liberdade e a conseqente equalizao jurdica entre

    brancos e negros, atendendo s necessidades do capitalismo em ascenso. Nas palavras

    de Octvio Ianni, o abolicionismo foi uma revoluo branca, isto , um movimento

    poltico que no se orientava no sentido de transformar, como se afirmava, o escravo em

    cidado, mas transfigurar o trabalho escravo em trabalho livre.7

    O que estava em jogo, segundo os integrantes da referida Escola, era amanuteno da hierarquia econmica e social vigente. Diante da possibilidade de quebra

    dessa ordem era necessrio que os abolicionistas agissem a favor de uma transio

    pacfica, orientando o processo de forma a buscar uma posio conciliadora com seus

    companheiros de classe (os senhores) e excluindo os escravos de um papel mais

    significativo nas movimentaes em torno da causa. Era necessrio criar uma imagem

    positiva em torno das atividades de produo, identificadas pela sociedade branca como

    exclusividade dos escravos. Por outro lado, no cabia a estes, apontados como uma

    massa inculta, inconsciente e perigosa, tomar parte ativamente desse processo. 8Ainda

    segundo Ianni,

    No , pois, uma revoluo de cativos que destri o trabalhoescravo para implantar o livre. So transformaes internas aosistema que paulatinamente arrunam os ltimos vestgios do regime,pois ele se tornara inadequado, envelhecido, e novas formas deproduo e existncia social se haviam instalado e expandiam-se. 9

    5Nas dcadas de 1960 e 70, o grupo de socilogos da USP sob o comando de Florestan Fernandes foiresponsvel por um significativo avano no que diz respeito produo de estudos sobre a escravido noBrasil. Seus principais representantes seriam o prprio Florestan Fernandes, Octvio Ianni, Fernando

    Henrique Cardoso, Carlos Alfredo Hasenbalg e Emlia Viotti da Costa. Veja: IANNI, Octvio. Asmetamorfoses do escravo. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1962; CARDOSO, Fernando Henrique.Capitalismo e Escravido no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande doSul. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; FERNANDES, Florestan. A Integrao do Negro naSociedade de Classes. 2 vols., 3 ed. So Paulo: tica, 1978; HASENBALG, Carlos. Discriminao eDesigualdades Raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979; COSTA, Emlia Viotti da Costa. DaSenzala Colnia. So Paulo: Ed. Brasiliense, 3 edio, 1989.6COSTA, Emlia Viotti da Costa. Op. cit., p.441.7IANNI, Octvio. Op. cit., p.235.8Idem, ibidem.9Idem, ibidem, p.233-234.

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    Inspirado nas palavras de Joaquim Nabuco, Fernando Henrique Cardoso dizia

    endossar o que o lder abolicionista havia definido como base do abolicionismo. Para o

    socilogo, o abolicionismo autntico de Nabuco seria fruto da ao de indivduos

    humanitrios e progressistas, que influenciados pelas luzes do sculo XIX, seriam os

    nicos capazes de auxiliar os escravos em seu caminho rumo liberdade.10

    Segundoessa tica, o escravo era incapaz de lutar sozinho por sua liberdade, tornando necessria

    a tutela de uma elite devidamente capacitada para conduzir o processo de emancipao

    e transio para o capitalismo.

    As propostas dos abolicionistas seriam baseadas nas necessidades da prpria

    elite e no na perspectiva dos escravos, afastados do processo de transio. Contudo,

    Fernando Henrique Cardoso afirma que, apesar de no se basear nos anseios dos

    cativos, o abolicionismo autntico no deixaria de refletir sobre necessidades que,

    teoricamente, corresponderiam ao ponto de vista dos escravos como a generalizao daliberdade e a equalizao jurdica entre negros e brancos. 11O socilogo considera que

    esta era a nicaforma possvel de conscincia totalizante da sociedade escravocrata

    brasileira, fundada na violncia e na supremacia da raa branca sobre a raa

    negra. 12(O grifo meu)

    Assim como seus abolicionistas autnticos, Fernando Henrique Cardoso

    considerou o escravo como um ser inerte e incapaz de agir em favor prprio de forma

    consciente. A coero violenta exercida pelo escravismo teria despersonalizado e

    embrutecido os cativos, tornando-os incapazes de uma reao coordenada contra o

    sistema e de perceber criticamente sua situao. 13Ser cativo significaria ser uma coisa,

    uma propriedade desprovida de direitos e conscincia. Para o socilogo, a condio

    jurdica de propriedade, de coisa, corresponderia diretamente condio social dos

    cativos. A reificao do escravo se daria objetiva e subjetivamente, ou seja, os prprios

    escravos se auto-identificariam como seres desprovidos de valores morais e capazes de

    agirem de forma autnoma. Assim, apesar de empreender aes humanas, o cativo

    apenas reproduzia as orientaes e significaes sociais impostas por seus senhores. 14

    Nesse caso, o nico tipo de reao que lhes seria possvel era o puro sentimento de

    revolta traduzido atravs das fugas e outras atitudes divergentes. Tais aes no

    10CARDOSO, Fernando Henrique. Op. cit.11Idem, ibidem, pp.219 e 220.12Idem, ibidem, p.221.13Idem, ibidem.14Idem, ibidem, p.125.

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    poderiam ser consideradas como imbudas de um significado poltico-social que tinha

    como alvo a negao da escravido, mas, to somente, como gestos de desespero e

    revolta e pela nsia indefinida e genrica de liberdade. 15O primeiro ato humano do

    escravo o crime, afirmou Jacob Gorender em seu O escravismo colonial,

    concordando com a perspectiva adotada por Fernando Henrique Cardoso.16

    Tanto Ianni quanto Cardoso insistiram em afirmar que uma reao consciente

    por parte dos escravos seria impossvel e que, no mximo, as fugas, atos de violncia ou

    mesmo a formao de quilombos, significariam apenas uma resposta violncia sofrida.

    Tal qual um animal maltratado, ou como um ser que manifesta a primeira caracterstica

    humana, o brbaro escravo, s vezes, respondia a agresso com outra. Em geral, a

    conscincia de revolta no chegava a exprimir-se no ato de negao da situao

    escrava. 17Ainda como um ser no autonmico, vrias vezes a reao aos desmandos

    de seus proprietrios tinham como obstculo os laos afetivos que os mancpios comeles mantinham, o que fez com que muitos permanecem nas unidades produtivas em

    que viviam mesmo aps terem sido libertados. 18

    Em geral, a possibilidade de percepo acerca da condio a qual os escravos

    estavam submetidos tinha relao direta com seu contato com as relaes de produo.

    Segundo Cardoso, quanto mais distante do setor produtivo que movia o sistema

    escravista, no caso o setor exportador, mais possibilidade haveria do cativo

    compreender a situao de explorao a qual era submetido. 19Entretanto, esta tomada

    de conscincia no foi um fato geral, j que os cativos no perceberam a situao como

    explorao de uma classe sobre a outra, mas como uma relao de violncia. Assim, a

    reao cativa seria caracterizada como uma resposta violncia exercida pela

    escravido, e no uma reao poltica luta de classes. 20

    J para Florestan Fernandes, tal inabilidade em perceber a explorao a que eram

    submetidos, selou o futuro dos negros na sociedade brasileira mesmo aps a abolio.

    Segundo Fernandes, a marginalizao dos negros aps a libertao seria inevitvel, uma

    vez que traziam consigo uma forte herana da escravido: a incapacidade de

    compreender sua posio nas relaes de produo. 21Tal fato fez com que os negros

    15Idem, ibidem, p.152 & IANNI, Otvio. Op. cit., p.234.16GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. So Paulo tica, 1978, p.65.17CARDOSO, Fernando Henrique. Op. cit., p.218.18IANNI, Otvio. Op. cit., p.222.19CARDOSO, Fernando Henrique. Op. cit., pp.218-219.20Idem, ibidem.21FERNANDES, Florestan. Op.cit.

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    no se integrassem na nova estrutura scio-econmica, pois no estavam estrutural e

    funcionalmente ajustados s condies dinmicas de integrao e de expanso da ordem

    social competitiva. 22 Mesmo depois de se verem livres das amarras escravistas, os

    negros conservariam consigo os defeitos herdados do cativeiro entre os quais estariam a

    incapacidade de sentir, pensar e agir socialmente como homens livres, perdendo lugarpara a mo-de-obra importada da Europa.23

    A tese da inadaptabilidade do negro nova conjuntura econmica e a ligao

    entre a ao abolicionista e interesses do setor produtivo acabaram por limitar a anlise

    dos membros da Escola Sociolgica Paulista. Sua interpretao leva apenas a um

    caminho: a influncia econmica no processo histrico e o choque entre classes

    dominantes e subalternas dentro das relaes de produo.

    O problema era que a anlise economicista e esquemtica proposta pelos

    marxistas ortodoxos enterrava nas sombras do passado algo que ia muito alm dasrelaes de produo. Fora dos muros da economia, pessoas comuns conseguiam

    mover-se e transformar seu meio independentemente das grandes estruturas sociais. Era

    preciso conferir suas prprias experincias e reaes diante do mundo que lhes cercava.

    Era preciso entender o processo histrico tambm como um processo com sujeito. 24

    Se a anlise historiogrfica acerca da escravido no Brasil fosse uma pea de

    teatro, poderamos dizer que a partir da dcada de 1980 o palco assistiu a entrada de

    mais um importante ator em cena: o escravo.

    A crise dos paradigmas marxistas nas duas dcadas anteriores impulsionou uma

    profunda reviso do processo histrico, levando ampliao dos objetos, das fontes e

    valorizao do indivduo comum enquanto agente transformador. O foco foi desviado

    das grandes estruturas sociais, da ao dos dirigentes polticos, dos grandes

    acontecimentos, e concentrado ento nos comuns, no pobre descalo, no agricultor

    ultrapassado. 25A chamada histria vista de baixo, inaugurada com os estudos do

    historiador britnico Edward Palmer Thompson, entre outros, representou essa mudana

    de foco seguida mais tarde pelos micro-historiadores italianos, interessados no estudo

    das trajetrias individuais dos novos atores da histria. 26O proscnio estava aberto

    22Idem, ibidem.23Idem, ibidem.24THOMPSON, Edward Palmer.A misria da teoria ou um planetrio de erros. Rio de Janeiro: Zahar,1981.25Idem,A formao da classe operria inglesa.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.26SHARP, Jim. A Histria Vista de Baixo. In: BURKE, Peter. A Escrita da Histria: Novas Perspectivas.So Paulo: EDUNESP, 1992, pp.39-62; THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e Caadores: a origem

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    para aqueles que raramente entravam em cena na historiografia. Ao invs de observar

    apenas as grandes mudanas estruturais, passou-se a levar em considerao a tenso

    entre a ao humana e as presses sofridas pelas estruturas sociais. 27

    Os reflexos de tais mudanas no panorama historiogrfico internacional foram

    sentidos na historiografia brasileira principalmente a partir da dcada de 1980.Influenciados pela histria vista de baixo e pelos novos trabalhos espraiados pelo

    mundo, os historiadores brasileiros passaram a se dedicar ao resgate daqueles sujeitos

    colocados margem da histria, o que resultou na criao da nova histria social do

    trabalho. 28 Evidentemente que essa mudana tambm afetou substancialmente a

    histria da escravido e sua abolio em terras brasileiras.

    A antiga tese de que os negros/escravos no passariam de uma massa inerte e

    brutalizada, desprovida de conscincia, obra do trato violento imposto pelo regime

    escravista, foi jogada por terra. Os figurantes transformaram-se em protagonistas deuma pea cotidiana que culminou no 13 de maio de 1888. Sem dvida, seu papel no

    era de coadjuvante. 29

    As novas pesquisas mostraram que os cativos possuam suas prprias percepes

    acerca da escravido, ao contrrio do que argumentaram os autores da Escola

    Paulista. Conseguiram jogar luz sobre o cotidiano de rebeldia, resistncia e negociao

    exercidas pelos escravos dentro do prprio sistema. Alguns historiadores passaram a

    incluir a experincia dos cativos em seus estudos sobre a escravido brasileira

    imprimindo uma nova abordagem na anlise da relao senhor-escravo. A influncia

    thompsoniana era patente como observou Silvia Hunold Lara:

    da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre.Traduo de Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; GINZBURG, Carlo. O queijo e osvermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela Inquisio . Traduo de Maria BetniaAmoroso. So Paulo: Companhia das Letras, 1987.27XAVIER, Regina. Biografando outros sujeitos, valorizando outra histria: estudos sobre a experinciados escravos. In: SCHMIDT, Benito Bisso. O biogrfico: perspectivas interdisciplinares. Santa Cruz doSul: EDUNISC, 2000, pp.97-130.28 LARA, Slvia H. Blowin in the wind: E. P. Thompson e a experincia negra no Brasil. Projeto

    Histria. So Paulo: PUC, outubro, 1995, pp. 43-56.29Dentre os vrios trabalhos que adotam essa perspectiva podemos citar: LARA, Slvia H. Campos daviolncia. Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro 1750-1808.Rio de Janeiro: Paz e Terra,1986; REIS, Joo Jos. Rebelio escrava no Brasil. A histria do Levante dos Mals (1835). So Paulo:Brasiliense, 1986; REIS, Joo Jos & SILVA, Eduardo. Negociao e Conflito: a resistncia negra noBrasil escravista. So Paulo: Companhia das Letras, 1987; AZEVEDO, Clia Maria Marinho. Op. cit.;CHALHOUB, Sidney. Vises da Liberdade: uma histria das ltimas dcadas da escravido da corte.So Paulo: Companhia das Letras, 1990; PAIVA, Eduardo Frana.Escravos e libertos nas Minas Geraisdo sculo XVIII: estratgias de resistncia atravs dos testamentos. So Paulo: Annablume, 1995;MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silncio: os significados da liberdade no sudeste escravista -Brasil, sc. XIX.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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    Ao tratarmos da escravido e das relaes entre senhores e escravos, tantoquanto ao tratarmos de qualquer outro tema histrico, lembramos, comThompson, que as relaes histricas so construdas por homens emulheres num movimento constante, tecidas atravs de lutas, conflitos,resistncias e acomodaes, cheias de ambigidades. Assim, as relaesentre senhores e escravos so fruto das aes de senhores e escravos,enquanto sujeitos histricos, tecidas nas experincias destes homens emulheres diversos, imersos em uma vasta rede de relaes pessoais dedominao e explorao. 30

    A noo de que os escravos construram sua prpria viso sobre o cativeiro e a

    liberdade, impondo dessa forma limites ao escravismo, mesmo estando a ele

    subjugados, suplantou totalmente as interpretaes historiogrficas anteriores focadas,

    em grande medida, na avaliao que os senhores escravistas formulavam a respeito dos

    escravos ou ainda das estruturas econmicas. Como observou Sidney Chalhoub,

    Os negros tinham suas prprias concepes sobre o que era o cativeirojusto, ou pelo menos tolervel: suas relaes afetivas mereciam algum tipode considerao; os castigos fsicos precisavam ser moderados e aplicadospor motivo justo; havia maneiras mais ou menos estabelecidas de os cativosmanifestarem sua opinio no momento decisivo da venda. 31

    Contudo, se o papel do escravo nessa histria havia mudado, alguns autores

    mantiveram a anlise do abolicionismo e do movimento abolicionista unicamente como

    representantes dos anseios da elite oitocentista, aquele negcio de brancos,

    comprometido com os interesses agrrios e preocupado apenas em controlar os

    mancpios (que j no eram mais seres inertes) e direcionar suas reivindicaes.

    Para autores como Lana Lage da Gama Lima e Clia Maria Azevedo, havia um

    comprometimento muito claro entre a atuao abolicionista e um projeto elitista de

    manuteno da estrutura social aps a transio.

    Segundo Lana Lage, mesmo tendo rompido com uma parcela considervel da

    elite, colaborando para que viesse tona uma rebeldia latente nas classes exploradas

    economicamente, um de seus pontos de apoio, o abolicionismo buscava limitar o

    processo de aprofundamento dessa rebeldia no momento que esta passava a ameaar os

    interesses de sua classe. 32

    30LARA, Slvia H. Blowin in the wind. Op. cit., p.46.31CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p.27.32LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo. Rio de Janeiro: Achim, 1981, p.22.

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    Ao analisar as interaes entre a rebeldia negra e o movimento abolicionista na

    cidade fluminense de Campos, a autora constatou que nos anos finais da escravido, a

    ao de ambos se complementavam. Uma teria potencializado a outra acelerando o

    processo de abolio. Com o auxlio abolicionista a rebeldia escrava teria se

    conscientizado ainda mais, ganhando contornos de uma reivindicao poltica aos olhosdo sistema:

    E, se a aliana com a violncia negra torna o movimento abolicionismomais incisivo, a rebeldia do escravo tambm se torna, a partir da, maisameaadora, porque mais conseqente. Assim, ao fazer do negro um aliado,apadrinhando suas exploses de revolta, o abolicionismo confere,imediatamente, a essa rebeldia uma conotao poltica anteriormentenegada pelo sistema. 33

    Aps a abolio, os ex-abolicionistas teriam passado a primar pelo controle damo-de-obra livre. Diante da ameaa de vadiagem por parte dos libertos, os ex-

    abolicionistas tentavam ajust-los s novas condies de trabalho, pedindo que se

    mostrassem dignos de sua nova condio e que entendessem que a liberdade deveria

    corresponder aplicao ao trabalho e obedincia ao patro, o novo senhor. 34Com a

    aliana feita na luta contra a escravido desfeita, os negros viam-se sozinhos diante de

    uma nova situao de explorao. A partir daquele momento suas atitudes

    divergentes, antes imbudas de um carter poltico conferido pelos abolicionistas,

    transformaram-se em caso de polcia.35

    J para Clia Azevedo, que explorou o medo da reao negra por parte da classe

    senhorial em Onda Negra, Medo Branco, a rebeldia negra, identificada atravs de

    assassinatos, revoltas e fugas, teria acelerado o processo de abolio de forma mais

    independente. 36O no quero dos escravos manifestado atravs de sua rebeldia, teria

    forado as elites e o prprio movimento abolicionista e se definirem diante da questo

    da abolio. Para a autora, assim como para Lana Lima, o comprometimento dos

    abolicionistas com os interesses dos grupos dominantes fez com que no houvesse outro

    interesse que no o controle dos perigosos escravos. Estes que deveriam na verdadecolher os louros da liberdade. 37

    33Idem, ibidem, p.139.34Idem, ibidem, p.150.35Idem, ibidem, p.151.36AZEVEDO, Clia Maria Marinho. Op. cit.37Idem, ibidem.

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    A autora afirma que a campanha abolicionista restringiu-se apenas imprensa,

    s tribunas parlamentares e s conferncias de salo. Para ela, o abolicionismo

    restringia-se praticamente aos limites estreitos da diminuta elite brasileira. 38(Grifo

    meu) Seus principais interlocutores seriam os prprios senhores de escravos, a quem

    tentavam convencer da irracionalidade do sistema escravista que deveria ser substitudopelo trabalho livre. Nisso, os abolicionistas teriam feito muito mais propaganda de seus

    intentos do que marcado de forma incisiva sua posio diante da abolio. Ao invs

    disso, teriam eles adotado posturas extremamente moderadas como o projeto de

    emancipao gradual ou mesmo o fomento de alforrias condicionais por parte dos

    senhores.

    Mesmo crescendo consideravelmente na dcada de 1880, no mais se

    encarcerando apenas no parlamento, sales ou jornais e apesar de alguns de seus

    membros apresentarem crticas estrutura fundiria do pas, setor que mantinhapraticamente a responsabilidade sobre a persistncia da escravido no Brasil -, o

    movimento abolicionista, segundo Clia Azevedo, teria deixado claro que suas

    intenes no possuam nenhum trao revolucionrio, mas to-somente reformista. 39

    Para a autora, o temor dos abolicionistas era de que o processo fugisse das

    rdeas por eles colocadas. Assim, teriam procurado manter o movimento dentro da

    legalidade institucional, muito embora vezes tivessem que transgredi-la por fora das

    circunstncias de um tempo de conflitos de classe e inter-classes generalizados. 40O

    objetivo seria um s: reordenar o social a partir das prprias condies sociais

    vigentes, sem nunca enveredar por utopias revolucionrias. 41 Segundo a autora, ao

    mesmo tempo em que lutava pela libertao dos cativos e sua integrao social, o

    movimento abolicionista envidava todos os esforos para manter o poder da grande

    propriedade, ou melhor, o poder do capital. Isso seria possvel apenas pelas vias legais.

    De acordo com Clia Azevedo, o ponto nevrlgico entre os abolicionistas era

    formao da mo-de-obra aps o fim do sistema escravista. Muitos inclusive se

    esforaram em demonstrar a inexistncia de preconceito racial no Brasil, o que

    facilitaria a incorporao dos libertos na nova estrutura de produo. Corroborando com

    as teses elaboradas por vrios intelectuais da poca como o mdico francs Louis Couty,

    que via no Brasil um verdadeiro paraso racial se comparado a outras naes escravistas

    38Idem, ibidem, p.88.39Idem, ibidem, p.8940Idem, ibidem, p.89.41Idem, ibidem.

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    como os Estados Unidos, onde imperava o preconceito e a violncia, os abolicionistas

    acreditavam que essa paz entre as raas poderia viabilizar a incorporao dos negros no

    futuro como trabalhadores livres. 42Contudo, isso no significa que os abolicionistas

    equiparavam negros e brancos. Estes eram tidos quase sempre como superiores moral e

    racialmente. J os negros deveriam se aperfeioar atravs do contato com os brancos,principalmente os que vinham da Europa, e com o trabalho livre. 43

    Contudo, militantes como Joaquim Nabuco e Andr Rebouas chegaram a

    elaborar dura crtica grande propriedade, assumindo uma posio favorvel ao projeto

    de educao tcnica dos ex-escravos e da reforma agrria, ou democracia rural, como

    queria Rebouas, acompanhada de um imposto territorial rural ou da desapropriao de

    terras incultas em favor da distribuio destas entre os nacionais.

    A existncia de projetos que tinham como base a crtica a um dos pilares centrais

    da escravido, a grande propriedade, pelo menos abala as teses vistas at aqui. Semdvida, a macia maioria dos figures abolicionistas pertencia elite que se mantinha

    com o suor dos escravos. Entretanto, nada garante que alguns desses filhos da elite

    escravagista tenham elaborado propostas que lhe quebrariam as pernas. O fato de que

    um projeto de abolio tenha sido vitorioso no garante que outros imbudos de intentos

    mais prximos de uma efetiva reestruturao social tenham existido.

    Ainda no fim da dcada de 1970, Richard Graham ao analisar textos assinados

    por Andr Rebouas e Joaquim Nabuco, verificou que os militantes intentavam algo que

    ia alm da simples equalizao jurdica. 44Os projetos traziam em si, alm da proposta

    de abolio imediata e sem indenizao, uma profunda crtica estrutura fundiria do

    Imprio e o clamor pela democracia rural, em outras palavras, a reforma agrria. O

    que para alguns autores no passou de uma adeso tardia a um projeto que tinha como

    eixo a insero dos ex-escravos na sociedade e que no poderia ir muito longe devido

    vinculao dos abolicionistas com o racialismo45, a meu ver abre possibilidades para

    que possamos visualizar a complexidade do movimento abolicionista.

    42Idem, ibidem, p.90.43Idem, ibidem, p.91.44GRAHAM, Richard.Escravido, reforma e imperialismo. So Paulo: Perspectiva, 1979.45 Optei por utilizar o conceito de racialismo elaborado por Tzvetan Todorov ao invs de racismocientfico como tem feito alguns autores. Todorov faz uma distino clara entre racismo e racialismo ondeo primeiro caracterizado por um comportamento revestido de dio e desprezo para com indivduos decaractersticas fsicas diferentes. J o racialismo seria uma ideologia, uma doutrina referente s raashumanas forjada na Europa Ocidental em um perodo amplo que vai do sculo XVIII a meados do XX.Para Todorov, a presena de um no significa a presena de ambos. Um indivduo pode ser racista semser necessariamente um terico que justifica seu comportamento com argumentos cientficos. Ao mesmotempo, o terico racialista no necessariamente um racista no sentido lato, pois suas vises tericas

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    Em seu panfleto Abolio imediata e sem indenizao, Andr Rebouas deixa

    claro que a abolio da escravido seria apenas um estgio da luta encampada pelo

    movimento abolicionista. 46Para Rebouas, o prximo passo seria a constituio de uma

    poltica baseada na reorganizao da estrutura fundiria do pas atravs do

    estabelecimento de um imposto territorial e da distribuio de terras entre os libertos.

    (...) O maior dano financeiro e econmico, produzido peloescravagismo sobre a nao brasileira provm do monoplioterritorial. Os exploradores da raa africana so simultaneamentegrandes monopolizadores da terra. Insaciveis em sua ambio nempermitem a formao da Democracia Rural com pequena lavoura,exercida por brasileiros, nem o estabelecimento de imigrantesagricultores e proprietrios.Nas regies agrcolas, o brasileiro no tem outro recurso senoreduzir-se a agregado ou, mais rigorosamente, a capanga de algumfazendeiro. 47

    De acordo com o projeto de Rebouas, abolio e reforma agrria andavam de

    mos dadas. Para o abolicionista, a regenerao do escravo s seria possvel atravs da

    propriedade rural que seria obtida a partir da diviso das terras antes destinadas

    exclusivamente grande lavoura. Segundo ele, ser livre e ser proprietrio rural

    constitui a maior aspirao do escravo desta terra miservel. 48Tais palavras rompem

    com a tese da inadaptabilidade do negro ao trabalho cunhada pelos intelectuais

    oitocentistas e sorvida por alguns historiadores, uma vez que identifica como seu maior

    anseio lavrar sua prpria terra.

    Para Graham, a existncia de tais projetos, principalmente aps a promulgao

    da Lei urea, determinou a adeso dos grandes proprietrios ao movimento

    republicano. Segundo o autor, eles aderiram ao movimento republicano no tanto por

    despeito e amargura, mas para evitar aquilo que lhes parecia um desastre at maior

    que a abolio: a reforma agrria. 49 (Grifo meu) Cientes de que a reforma agrria

    podem no ter qualquer influncia sobre seus atos. Veja: TODOROV, Tzvetan. Ns o os outros: a

    reflexo francesa sobre a diversidade humana. Traduo Srgio Ges de Paula. Rio de Janeiro: JorgeZahar Ed., 1993.46REBOUAS, Andr.Abolio imediata e sem indenizao.Rio de Janeiro, Typ. Central E.R. da Costa,1883.47Idem, ibidem.48 Idem, Agricultura Nacional, Estudos Econmicos; Propaganda Abolicionista e Democrtica. Rio deJaneiro: Lamoureux, 1883. Apud GRAHAM, Richard. Op. cit., p.185. Sobre o projeto de democraciarural de Andr Rebouas veja tambm: TRINDADE, Alexandro Dantas. Andr Rebouas: daEngenharia Civil Engenharia Social. Tese do doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia doInstituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas: 2004.49GRAHAM, Richard. Op. cit. p.183.

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    fazia parte do pacote abolicionista, e j tendo sido derrotados diante da abolio, os

    latifundirios no tiveram outra sada seno fazer de tudo para que a ao por eles tida

    como revolucionria no se completasse. 50

    Atualmente, a releitura dos textos de poca, assim como fez Richard Graham,

    comea a preencher lacunas da histria da abolio. Trabalhos como o da historiadoraCludia Andrade dos Santos, que segue o caminho aberto por Graham, demonstram

    como as propostas de democracia rural dos abolicionistas representavam um projeto

    formatado em consonncia com o mundo dos libertos, apresentando um movimento

    muito mais amplo do que se pensava anteriormente. 51

    A autora critica o fato de parte da historiografia ter desconsiderado a existncia

    desses projetos sociais expressos nos documentos de poca e a forma como generalizava

    o movimento, no levando em conta a existncia de diferentes tendncias, qualificando

    o abolicionismo como unicamente um negcio de brancos. Cludia Santos consideraque o fato dos abolicionistas terem evitado que a abolio se fizesse nas ruas,

    inclusive com o emprego da violncia, no caracterizaria por si s um ato reacionrio

    como props Clia Azevedo. Para Santos, o discurso da no violncia presente, por

    exemplo, nos textos de Nabuco, Andr Rebouas e Jos do Patrocnio, refletia o temor

    da poca de ver se repetir no Brasil uma grande insurreio escrava, semelhante ao

    ocorrido no Haiti no incio do sculo. Contudo, essa opo no significou a inexistncia

    de projetos mais prximos do que seriam os anseios dos escravos como afirmava

    Rebouas ao dissertar sobre seu projeto de reforma agrria. Ao mesmo tempo, vrios

    grupos abolicionistas teriam primado pela participao dos escravos no movimento,

    incentivando fugas e outros atos de desobedincia, principalmente nos anos finais da

    escravido. 52 No se trata, portanto, de canonizar ningum, de forjar heris da

    liberdade, mas to somente dar conta da existncia de projetos que no foram levados

    em conta na histria que j se conhece. Projetos que no caso foram concebidos pelos

    mesmos indivduos que antes se alinhavam com os intentos elitistas e teorias

    preconceituosas. 53

    50Idem, ibidem.51 SANTOS, Cludia Andrade dos. Projetos sociais abolicionistas: ruptura ou continusmo? In: REISFILHO, Daniel Aaro (organizador). Intelectuais, histria e poltica: sculos XIX e XX. Rio de Janeiro:7Letras, 2000, pp.54-74.52Idem, ibidem.53Clia Azevedo criticou artigos publicados por Evaldo Cabral de Mello e Jos Murilo de Carvalho, que,segundo ela, forjavam uma imagem herica de Joaquim Nabuco, mesmo tendo este lanado mo deargumentos racistas em alguns de seus textos. Veja em: AZEVEDO, Clia Maria Marinho. Quemprecisa de So Nabuco? In:Estudos Afro-asiticos, vol.23 no.1. Rio de Janeiro: Janeiro/Junho, 2001.

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    Com o avano das pesquisas, a idia do abolicionismo como unicamente um

    negcio de brancos foi relativizado. Foram evidenciadas as ligaes entre aquele

    movimento antes tido como de salo e as camadas populares que circulavam pelas ruas

    e senzalas do Imprio. O abolicionismo passou a ser destacado como um movimento

    multifacetado e complexo.54

    Essa pluralidade do abolicionismo foi levada em conta por Maria Helena

    Machado em O Plano e o Pnico. A autora chama a ateno para a variedade e

    complexidade dentro do que se convencionou chamar genericamente de movimento

    abolicionista questionando as generalizaes, que ora levavam a um abolicionismo

    herico, ora malfeitor e elitista. Seu trabalho relativiza as lideranas incontestes desta

    viso, focalizando

    uma complexa interao de projetos e atuaes diversas que, aoatingir extratos sociais perigosamente instveis, colocou em cursouma atuao poltica muito menos comprometida com os cnones doliberalismo, do imperialismo e do racismo cientfico do que at omomento se tem admitido.55

    Maria Helena Machado rompe com a tese de que o abolicionismo teria se

    limitado ao legal condenando apenas as atitudes tidas como inconseqentes.

    Matizando a ao abolicionista em So Paulo nos anos finais do regime escravista, a

    autora percebeu como a arraia mida e vrios grupos abolicionistas interagiam

    mesclando idias de natureza bem diversa. Em vrios pontos do Imprio os meetingse

    demais manifestaes de rua organizadas pelos abolicionistas, chamavam a ateno dos

    setores populares dos centros citadinos, que mesmo de forma turbulenta e desorganizada

    sentiam-se atrados pelas palavras que ecoavam pelas ruas. 56

    54O iderio abolicionista europeu tambm foi alvo de reavaliaes nas suas influncias, especialmenteaquelas referentes s contribuies dos colonos do Novo Mundo. O historiador Peter Linebaugh mostracomo no sculo XVII ingleses pobres se dispersaram pela Amrica como exilados polticos, criminosos

    deportados e trabalhadores com a obrigao de servios, vindo, em algumas ocasies, a se juntarem aosescravos africanos e crioulos em suas lutas pela liberdade no Novo Mundo. Para ele, durante a segundametade do sculo XVIII, essa tradio se internacionaliza, principalmente quando se verifica o retornodessa experincia para os quadros dos movimentos abolicionista e da classe operria na Inglaterra. Oautor cita a presena de ex-escravos africanos oriundos da Amrica, como Equiano e Cugoano,defensores de ideais antiescravistas, junto aos grupos mais radicais da classe operria inglesa.LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas atlnticas estremeceram. Revista Brasileira de Histria, n 6,7-46, set., 1983.55MACHADO, Maria Helena P. O plano e o pnico: os movimentos sociais na dcada da abolio. Riode Janeiro: Editor UFRJ, EDUSP, 1994, p.146.56Idem, ibidem, p.148.

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    Ao contrrio do que se convencionou afirmar, o movimento abolicionista era um

    movimento de frente ampla que abriu espao para tendncias e atuaes muito

    variadas. Mesmo tendo adotado primeiramente um posicionamento mais conservador, a

    adeso do Z povinho e a radicalizao de vrias de suas alas fez com que o

    abolicionismo rompesse com as propostas gradualistas e emancipacionistas.57

    Mesmo sendo influenciado pelas teorias cientficas que circulavam com

    desenvoltura pelo acanhado crculo intelectual brasileiro, o movimento abolicionista no

    teria conseguido transformar tais idias, como o racialismo, em uma camisa de fora

    ideolgica capaz de uniformizar seu discurso e prtica. 58 Sendo um movimento

    composto por agentes to variados, teve uma multiplicidade de interpretaes das idias

    em voga. Alm disso, ao tomar contato com os populares, estas mesmas idias

    ganhavam cores imprevisveis e pouco ortodoxas.

    A autora tambm rompe com a idia de que o movimento teria se limitado aosmuros das cidades, apontando para a ao de grupos radicais como os Caifazesno meio

    rural, estabelecendo assim uma ponte entre a ao dos escravos nas fazendas do interior

    de So Paulo e o abolicionismo urbano. Aps auxiliar as fugas de fazendas do interior

    paulista e da capital, os abolicionistas conduziam os fugidos para a cidade de Santos

    onde atravs da unio com outros fugidos refugiavam-se nos quilombos do Jabaquara e

    Vila Matias. 59

    Essa interao entre abolicionistas e escravos tambm foi alvo da pesquisa

    empreendida por Eduardo Silva em As camlias do Leblon e a abolio da

    escravatura.60 Empreendendo um trabalho de Histria Cultural, Silva inicia uma

    jornada ao Brasil do fim do sculo XIX atravs de um smbolo abolicionista, a camlia.

    A flor que simbolizava a luta contra a escravido, usada na lapela, presenteada em

    forma de buqu ou cultivada nos jardins da Corte, trazia em si muito mais que um

    smbolo de um movimento, mas a sua complexa prtica. O ponto de produo e

    distribuio das flores da liberdade era nada mais nada menos que um quilombo

    situado no que hoje o bairro do Leblon no Rio de Janeiro. Este, por sua vez,

    representava um novo tipo de resistncia ao sistema escravista.

    57Idem, ibidem, p.160.58 Sobre discusso das teorias racialistas no Brasil veja: SCHWARCZ, Lilia Moritz.O espetculo dasraas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras,1993.59MACHADO, Maria Helena P. Op. cit., p.14960SILVA, Eduardo. As camlias do Leblon e a abolio da escravatura: uma investigao de histriacultural.So Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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    Diferentemente do que ficou conhecido como quilombo-rompimento,

    caracterizado pela negao da ordem escravista e de relativa autonomia em relao

    sociedade branca61, o quilombo do Leblon era apoiado ou mesmo patrocinado por

    abolicionistas constituindo-se como um ponto de encontro entre estes e escravos

    fugidos, alm de smbolo de resistncia e difuso dos ideais do movimento. A existnciado quilombo-abolicionista refora a complexidade da atuao antiescravista, j que

    representa a interao entre o movimento e os maiores interessados na abolio, os

    escravos. 62

    Ao lado do quilombo do Jabaquara em Santos, o quilombo do Leblon servia

    como uma espcie de instncia de intermediao entre os fugitivos e a sociedade. Ao

    contrrio do modelo clssico de quilombo, os laos entre a comunidade escrava e a

    sociedade, ou melhor, entre o quilombo e o crculo poltico da Corte eram muito ntidos.

    Entre seus lderes estavam cidados bem conhecidos da sociedade da capital doImprio, muitos deles membros da Confederao Abolicionista. 63

    O comerciante portugus Jos de Seixas Magalhes, idealizador e proprietrio

    das terras do quilombo, fez com que as belas flores cultivadas em parceria com os

    fugidos chegassem at a mesa da realeza. As camlias do Leblon enfeitavam a mesa de

    trabalho da Princesa Regente no Palcio das Laranjeiras, uma mostra da cumplicidade

    das autoridades com o quilombo abolicionista. 64

    Essa visibilidade do mocambo para a sociedade em volta fez com que ele se

    tornasse um dos smbolos do abolicionismo ao lado das flores nele cultivadas. Nas

    barbas da polcia e demais autoridades, abolicionistas e escravos promoviam belas e

    animadas festas inclusive com uma boa batucada. 65 Um batuque desafiador que

    marcava o ritmo do clamor pela liberdade.

    61GUIMARES, Carlos Magno. Minerao, Quilombos e Palmares. In: Liberdade por um fio:Histriados quilombos no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp.139-163.62 SILVA, Eduardo. Op. cit. Tambm foi muito comum o fato de alguns quilombos participaremmarginalmente da pequena economia das vilas e arraiais dos quais estavam prximos. Muitas vezes, os

    quilombolas vendiam seus excedentes para pequenos comerciantes comprando deles os produtos de quenecessitavam, estabelecendo assim uma relao direta com a sociedade. Alm disso, acabavam porfuncionar como uma espcie de vlvula de escape do sistema escravista, j que, ao retirarem das senzalasos escravos mais rebeldes ajudavam a evitar maiores conflitos. Segundo o historiador Donald Ramos, estaseria a explicao para a ausncia de rebelies escravas em Minas Gerais durante o sculo XVIII. Vejaem: RAMOS, Donald. O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais do sculo XVIII. In:Liberdade por um fio:Histria dos quilombos no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp.164-192.63SILVA, Eduardo. Op. cit., p.13.64Idem, ibidem, p.15.65Idem, ibidem.

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    Ao contrrio do ocorrido com a historiografia sobre a abolio em outras

    provncias como So Paulo e Rio de Janeiro, o caminho percorrido pela historiografia

    mineira sobre o tema ainda bem curto. Talvez um reflexo da ainda pouca ateno que

    o sculo XIX mineiro mereceu entre os historiadores se comparado ao dourado sculo

    XVIII. bem verdade que a produo sobre o oitocentos vem crescendo nos ltimosanos, mas tambm fato o seu contraste com a grande variedade de trabalhos dedicados

    ao sculo anterior, marcado pelo auge do surto minerador e por episdios caros

    historiografia nacional como a Inconfidncia Mineira.

    A prova da ainda tmida caminhada da historiografia sobre a abolio em

    Minas Gerais a existncia de apenas dois trabalhos dedicados exclusivamente ao tema.

    Os trabalhos de Oiliam Jos e Liana Maria Reis, ainda ocupam o lugar de primeiras

    pesquisas dedicadas ao assunto em Minas Gerais.

    Em A Abolio em Minas, trabalho publicado na dcada de 1960, Oiliam Josafirma que, ao contrrio do ocorrido em outras provncias, o movimento abolicionista

    no teve em terras mineiras um papel muito ativo. Acostumados ao silncio e quietude

    das alterosas, os mineiros teriam preferido agir de forma bem comedida, colaborando

    apenas de alguma forma para que nas montanhas mineiras tambm se fizesse ouvir o

    protesto contra a escravido. 66

    Para o autor, a formao cultural e religiosa dos mineiros teria determinado que

    a crtica escravido na provncia fosse marcada por aes isoladas de no mais que

    alguns poucos intelectuais, profissionais liberais e estudantes que atuaram

    especialmente em Ouro Preto, Campanha, Diamantina e Juiz de Fora, uma vez que,

    segundo Oiliam, o ambiente provinciano mineiro, com suas definidas realidades

    polticas, sociais e econmicas, no lhes era propcio. 67A distncia do crculo poltico

    da Corte somada mineiridade, foram fatores determinantes para que o abolicionismo

    ganhasse uma feio to tmida em Minas Gerais.

    Em um primeiro momento, Oiliam Jos afirma que se houve alguma defesa da

    abolio entre os mineiros esta veio das corajosas vozes do meio clerical, dos fiis da

    Igreja, das famlias mais bem dotadas moralmente, ou ainda de estudantes e dos

    profissionais liberais. 68 Curiosamente, aps marcar a moderao imposta pela

    mineiridade, Jos se voltou aos dois ltimos grupos elencados entre aqueles que teriam

    66JOS, Oiliam.A Abolio em Minas.Belo Horizonte: Itatiaia, 1962.67Idem, ibidem, p.99.68Idem, ibidem.

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    se pronunciado contra a escravido, identificando-os como responsveis por aes tidas

    por ele como radicais.

    Ao se referir ao movimento abolicionista ouropretano, o autor destaca a

    participao em seus quadros de profissionais liberais e estudantes, que teriam

    desenvolvido uma intensa campanha contra a escravido na antiga capital da provncia.Segundo ele, a Sociedade Abolicionista Ouropretana, fundada em 1882, que teria se

    limitado em um primeiro momento a uma atuao mais tmida, teve, em um perodo no

    precisado, a radicalizao de suas aes a partir da atuao dos estudantes dos cursos

    superiores da capital (Engenharia de Minas e Farmcia), que teriam aumentado a

    propaganda abolicionista e incentivado fugas entre os escravos e auxiliado em sua

    ocultao.69Ao que parece, os abolicionistas mineiros, pelo menos os da capital, no

    seriam to tmidos assim. Contudo, a falta de preciso do autor na identificao de suas

    fontes complica o caso.Em seu trabalho sobre a presena da rebeldia escrava e do abolicionismo na

    imprensa mineira na segunda metade do sculo XIX, Liana Maria Reis destaca essa

    falha da obra de Oiliam Jos, que segundo ela, determinou a vitria da ideologia da

    mineiridade sobre o abolicionismo embora sem o saber. Para Reis, alm da falta de

    rigor metodolgico o autor no levou em conta aspectos importantes como o peso da

    conjuntura econmica sobre o processo de abolio. 70

    Liana Reis afirma com base na anlise de documentao oficial e da imprensa,

    que o movimento abolicionista de fato ocorreu em Minas Gerais acompanhando o

    movimento em torno da questo servil que ocorria em mbito nacional. A singularidade

    do processo abolicionista em Minas ficaria por conta da especificidade da economia e

    do escravismo na provncia. Uma economia diversificada e basicamente agrria, com

    destaque para a pequena e mdia posse de escravos, teria colaborado para a manuteno

    do regime escravista e para o estabelecimento de limites na atuao do movimento

    abolicionista, que teria apresentado ali uma feio mais moderada e presa aos projetos

    da elite branca assim como deixou entender Oiliam Jos.

    Mesmo apontando para o carter moderado e legalista dos abolicionistas

    mineiros, a autora afirma que este teria conseguido, principalmente atravs da imprensa,

    auxiliar na construo de uma mentalidade antiescravista na provncia, inclusive entre

    69Idem, ibidem, p.95.70 REIS, Liana Maria. Escravos e Abolicionismo na Imprensa Mineira 1850/88. Dissertao demestrado apresentada ao Departamento de Histria da Universidade Federal de Minas Gerais. BeloHorizonte, 1993.

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    os escravos. 71 Entretanto, a rebeldia escrava, mesmo sendo influenciada em certa

    medida pela propaganda abolicionista, teria se desenvolvido de forma independente,

    colaborando para a fragilizao da escravido, o que bem marcado pela autora.

    De acordo com Liana Reis, apesar do contato entre escravos e associaes

    emancipadoras, especialmente no ambiente urbano, o processo de conscientizao dosmancpios seria estruturalmente limitado. Isso porque a imagem socialmente construda

    do escravo seria a de um ser infeliz e vtima de sua condio, ou ainda de um inimigo

    em potencial, capaz dos atos mais brbaros. 72 Atravs de notas publicadas pelas

    sociedades abolicionistas nos jornais mineiros, a autora afirma que a divulgao das

    aes desenvolvidas demonstrava seu carter moderado e legalista, visto que a maioria

    no tinha como objetivo promover a libertao de escravos de forma muito ampla, nem

    defendiam a abolio como algo a ser resolvido imediatamente. 73 Vinculando-se

    perspectiva empreendida por Clia Azevedo, Reis afirma que a mentalidadeantiescravista propagada por estas entidades no pode ser considerada como

    revolucionria.

    S o aprofundamento do estudo dessas entidades antiescravistas poder revelar

    seu modus operandi. Acredito que essas lacunas historiogrficas que ainda persistem

    podem ser minoradas atravs da anlise das especificidades regionais da provncia

    mineira. Concordando com Liana Reis, creio que a recuperao das singularidades do

    abolicionismo em Minas Gerais pode levar a ampliao da anlise do processo como

    um todo, destacando suas particularidades em relao a outras regies do Brasil,

    impedindo dessa forma generalizaes feitas com base nas anlises empreendidas para

    outras provncias. Contudo, foi levando em conta a diversidade e complexidade do

    movimento abolicionista demonstrados nos trabalhos de Maria Helena Machado,

    Cludia Santos e Eduardo Silva, que analisei o desenrolar das aes antiescravistas em

    Ouro Preto e Mariana, levando em considerao as reaes e expectativas que at

    mesmo as palavras mais moderadas provocaram entre os atores que circularam por duas

    das mais antigas urbes mineiras. A hiptese trabalhada aqui a de que, assim como em

    outras plagas do Imprio, Minas Gerais pode ter assistido a uma multiplicidade de

    posicionamentos em torno da campanha pelo fim da abolio e no apenas tmidos

    71Idem, ibidem, p.201.72Idem, ibidem, p.173.73Idem, ibidem, p.114.

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    discursos alimentados pelo esprito mineiro ou pela dependncia econmica da

    escravido.

    As balizas temporais estabelecidas demarcam um perodo de intensificao dos

    debates e da efetiva implementao de mecanismos que visavam, mesmo que

    morosamente, a extino do sistema escravista. Com a promulgao da Lei do VentreLivre, em 1871, estava encetado o projeto de emancipao gradual vislumbrado pelo

    Governo Imperial que pretendia por a escravido abaixo com doses de conta gotas,

    respeitando o sagrado direito de propriedade dos senhores escravistas. Contudo,

    mesmo trazendo em si o respeito aos direitos dos proprietrios que seriam devidamente

    indenizados pelas perdas, a lei de 1871 tambm abria uma brecha para que os escravos

    pudessem conquistar a liberdade.

    Alm da notria libertao dos filhos de escravos nascidos aps sua

    promulgao, a Lei do Ventre Livre trazia tambm a obrigatoriedade do registro dosescravos, permitindo assim o controle por parte do Estado das transaes de compra e

    venda destes. Aliado obrigatoriedade da matrcula, tambm foi criado o Fundo de

    Emancipaoque tinha como objetivo libertar o maior nmero possvel de cativos por

    parte do Estado, atravs de sorteios anuais utilizando como recurso o imposto pago

    pelos senhores sobre a compra e venda de cativos (meia-sisa). Entretanto, alguns

    autores destacaram que, mesmo tento colaborado para o colapso da escravido, a Lei de

    1871 teria sido ineficaz no que se refere melhoria das condies de vida dos escravos.

    A omisso dos senhores no cumprimento das determinaes legais teria determinado o

    insucesso da lei transformando-a em mais uma forma de manipulao dos cativos. 74

    No entanto, esta perspectiva desconsidera totalmente o fato de que, essa mesma

    lei, possibilitou a criao de dispositivos jurdicos que garantiram aos escravos o que

    antes era apenas uma prtica costumeira, como a compra da alforria atravs da

    acumulao de peclio. A lei conferia aos cativos um subsdio jurdico que os

    possibilitaria alcanar a liberdade e contestar o descumprimento dos acordos firmados

    com seus senhores nos tribunais, inclusive com o auxlio de advogados vinculados s

    idias antiescravistas, o que representou um golpe que auxiliou a desarticular o sistema

    escravista.

    Constantemente, o perodo posterior promulgao da lei, identificado como

    sendo perpassado por atuaes estritamente legalistas, de tom moderado, restringindo-se

    74Veja: COSTA, Emlia Viotti da Costa. Op. cit. & CONRAD, Robert,Os ltimos anos da escravaturano Brasil.Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978.

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    aos debates legislativos, imigrantistas e atuao forense no que diz respeito crtica ao

    escravismo, o que mudaria apenas no incio da dcada seguinte com a campanha

    abolicionista.

    Para Elciene Azevedo, esse balizamento temporal acaba por dar mais

    importncia ao que vem por ltimo, a suposta fase radical, sendo esta melhor que aprimeira, a legalista. Um antagonismo entre despolitizao e politizao. Segundo ela,

    os historiadores acabaram incorrendo em anacronismo, j que lanaram mo de um

    aparato terico que compreendia caractersticas dos movimentos sociais do incio do

    sculo XX no Brasil, como os movimentos operrios e revolucionrios. 75

    Corroborando com Elciene Azevedo, no nos limitamos a considerar a atuao

    antiescravista empreendida na dcada de 1870 como apenas moderada e legalista.

    Assim como a autora, levamos em consideraoa lgica de consolidao das estratgias

    e aes que foram posteriormente rotuladas de radicais ou legalistas. Mesmoenquadrada em mbito legal, como os tribunais, a interferncia dos indivduos

    interessados na abolio da escravido poderiam representar na verdade o incio da

    fragilizao da ordem vigente. Esse foi o caso dos advogados que se envolveram nas

    chamadas aes de liberdade, processos judiciais movidos pelos prprios cativos contra

    seus senhores objetivando a liberdade.

    A lei era, ao mesmo tempo, a base de sustentao da escravido moderna e o

    espao onde esta mesma base poderia ser quebrada. A ambigidade das leis, desde o

    Direito Romano at as constituies liberais do XIX, tornou o campo do direito uma

    verdadeira arena de batalha entre senhores e escravos. Os primeiros criaram as leis para

    assegurar seu domnio sobre os cativos, que, por sua vez, souberam utilizar as brechas

    existentes na legislao para alarem a liberdade. 76Assim, as aes de liberdadeforam

    uma prova de como o terreno jurdico era movedio, possibilitando que, muitas vezes,

    auxiliados por um advogado, os escravos se lanassem nos tribunais em busca da

    liberdade. Chegando s ltimas dcadas da escravido, esses processos judiciais

    constituram-se como mais um dos instrumentos utilizados pelo movimento

    abolicionista e pelos cativos para fragilizar o regime escravista. 77

    75 AZEVEDO, Elciene. O Direito dos escravos: Lutas e Abolicionismo na Provncia de So Paulo nasegunda metade do sculo XIX.Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Histria do Institutode Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2003.76GRINBERG, Keila. Liberata - a lei da ambigidade: as aes de liberdade da Corte de Apelao doRio de Janeiro no sculo XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1994.77 Veja: CHALHOUB, Sidney. Op.cit.; MATTOS, Hebe Maria. Op. cit.; GRINBERG, Keila. Op. cit.;AZEVEDO, Elciene. Op. cit.

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    Esta ser uma de nossas fontes para observar atuao dos militantes

    antiescravistas ouropretanos emarianenses. Para que pudesse desnudar o processo de

    abolio nos antigos centros de poder mineiros lancei mo de um amplo corpus

    documentalcomposto por peridicos, documentao judicial, eclesistica, e por fim de

    relatos de poca que possibilitaram visualizar a atuao antiescravista na regio. Aanlise e o cruzamento das fontes cotejadas possibilitaram que se pudessem observar os

    debates e aes dos atores envolvidos, fossem escravos, senhores ou abolicionistas.

    Nos peridicos procurei verificar como o projeto de emancipao gradual foi

    recebido pelos mineiros da Metalrgica-Mantiqueira, regio onde se localizavam Ouro

    Preto e Mariana, bem como suas reaes acerca do avano do abolicionismo na

    derradeira dcada da escravido, procurando artigos de crticos ou apoiadores do fim da

    escravido, alm de notcias que indicassem a existncia e atuao de sociedades

    abolicionistas na regio. Foram consultados 33 jornais das cidades de Ouro Preto eMariana, localizados na Hemeroteca Pblica do Estado de Minas Gerais e na Biblioteca

    Nacional, editados dentro de recorte temporal estabelecido (1871 e 1888). O critrio

    utilizado na leitura dos peridicos foi o de selecionar todas as informaes que, de

    alguma forma, diziam respeito ao tema pesquisado, a escravido e a luta por seu fim.

    J a documentao judicial, especialmente as aes de liberdade, serviu para

    observarmos a atuao dos escravos e dos militantes da abolio no terreno da Lei.

    Observamos como os primeiros engendraram estratgias para alcanarem a liberdade

    dentro dos tribunais ouropretanos e marianenses, e como os advogados envolvidos

    nesses processos os auxiliaram, utilizando muitas vezes argumentos francamente

    antiescravistas. As referidas fontes esto localizadas em trs instituies arquivsticas:

    Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana, Arquivo Histrico da Casa dos

    Contos e Arquivo Histrico da Casa do Pilar, ambos em Ouro Preto.

    Com relao s fontes eclesisticas, localizadas no Arquivo Eclesistico da

    Arquidiocese de Mariana, analisei o papel dos religiosos da ento diocese no processo

    de abolio, observando a reao do rebanho diante de sua manifestao sobre o fim

    da escravido. Foram observados os reflexos da atuao da Associao Marianense

    Redentora dos Cativos, entidade fundada no ano de 1885 e vinculada Confraria de

    Nossa Senhora das Mercs, alm de uma Carta Pastoralcontra o elemento servil escrita

    pelo ento bispo diocesano, Dom Antonio Maria Correa de S e Benevides, no ano de

    1887.

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    Relatos e memrias dos que presenciaram o fim da escravido foram utilizados

    na tentativa de reconstituir os cenrios dos debates sobre a abolio. No caso, minhas

    fontes foram Homens e factos de meu tempo: 1862-1937, um livro de memrias do

    farmacutico Aurlio Egydio dos Santos Pires, estudante no Liceu Mineiro e Escola de

    Farmcia na dcada de 1880; Ouro Preto, descrio dos fatos e costumes ouropretanosfeita por Henrique Barbosa da Silva Cabral; e um relato registrado em um Livro de

    Tombo, um documento eclesistico, de uma freguesia de Mariana, Senhor Bom Jesus do

    Monte do Furquim, ou simplesmente Furquim. Quanto ao autor deste texto, sabe-se

    apenas que trata-se de um professor que durante algum tempo tambm trabalhou como

    funcionrio dos correios da freguesia. As fontes foram usadas como um instrumento de

    reconstruo da coletividade oitocentista na qual foram produzidas. Creio que a forma

    como os relatores reconstruram o passado, selecionando os fatos dos quais

    participaram, presenciaram ou mesmo de que apenas ouviram falar, nos remetediretamente seu tempo, sua coletividade. Concordando com Maurice Halbawachs, a

    memria aqui ser entendida como fruto do contato social. 78

    No primeiro captulo procurei descrever os cenrios principais deste trabalho,

    Ouro Preto e Mariana, discutindo com a historiografia existente sobre a escravido em

    Minas Gerais no sculo XIX. Em seguida, foram analisadas as reaes dos habitantes da

    Serra do Itacolomi em relao promulgao da Lei do Ventre Livre, observando a

    multiplicidade de posicionamentos explicitados nos jornais que expressavam, inclusive,

    o temor dos senhores diante da possvel quebra de seu domnio sobre os mancpios.

    O segundo captulo apresenta o surgimento do movimento abolicionista na

    dcada de 1880 que teve na capital seu principal ponto de ao. Foi verificada a criao

    de cinco sociedades e trs jornais abolicionistas entre os anos de 1881 e 1887 em Ouro

    Preto. A princpio as atividades das sociedades giravam em torno da promoo de

    reunies, encontros e saraus musicais bem comportados, onde, vez por outra, era

    promovida a liberdade de um escravo. Entretanto, nos ltimos anos da dcada de 1880,

    alguns integrantes do movimento local parecem ter rompido com a tranqilidade

    mineira de seus colegas ao acolherem escravos fugidos que vinham de outras paragens

    da provncia, transformando a velha Vila Rica em um verdadeiro esconderijo para

    muitos daqueles que buscavam a liberdade. J na vizinha Mariana, o clero, atravs da

    Associao Marianense Redentora dos Cativos - uma sociedade emancipadora

    78HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva.Traduo de Laia Teles Benoior. So Paulo: Centauro,2004.

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    vinculada Confraria de Nossa Senhora das Mercs -, e da ao do ento Bispo

    Diocesano, Antnio Maria Correa de S e Benevides, intentou colaborar, de forma

    moderada, para a emancipao gradual dos escravos, porm o tom comedido de suas

    palavras pode ter colaborado para o convencimento da necessidade do fim da escravido

    entre os fiis da Igreja, alm de ter causado reaes inesperadas por parte dos cativos.Por derradeiro, o terceiro captulo mostra atravs dos processos judiciais as

    estratgias utilizadas pelos escravos para alcanar a liberdade, bem como suas

    impresses acerca do que seria um cativeiro justo. No obstante, tambm foi observada

    a forma como advogados envolvidos nestes processos se posicionaram em relao

    escravido, e suas ligaes com o movimento abolicionista que parece estar diretamente

    ligado ao aumento do nmero de processos na dcada de 1880, principalmente das

    contendas em que o escravo alegava ser um africano importado para o Brasil aps a

    primeira lei de proibio do trfico transatlntico, datada de 1831.

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    CAPTULO 1 - O PALCO, OS CENRIOS, TODO O ELENCO E OINCIO DA HISTRIA.

    De todas as capitanias, porm, era a de

    Minas a mais rica, a mais populosa, amais amante da liberdade, e, portanto, adestinada a hastear um dia o pendo darevolta, e convidar suas irms paratomarem parte no convvio das naeslivres e civilizadas.Liberal Mineiro, 21 de abril de 1886.

    O sangue do glorioso mrtir, que regou oabenoado solo mineiro, forma hojesobre nossas montanhas altaneiras, comocarter de seus habitantes, uma grandenebulosa donde, mais cedo ou mais

    tarde, surgir o sol da liberdade entre asbnos do trabalho livre.Augusto de Lima.O Contemporneo, 21 de abril de1887.79

    1.1 - O que h entre as montanhas? O palco e os cenrios.

    Terra de um passado literalmente dourado. Bero da liberdade cujo brado foi

    sufocado no patbulo. Os dois excertos acima, utilizados como epgrafes deste captulo

    que ora se inicia, representam o saudosismo dos mineiros da segunda metade do sculo

    XIX (ou mesmo de alguns de nosso tempo) ante a um passado de riquezas

    proporcionadas pela minerao e pelo exemplo herico dos inconfidentes, os primeiros

    a lutar pela liberdade da terra brasileira, os primeiros a espalhar pelas montanhas

    altaneiras o perfume da liberdade.

    Bom, poesias parte, a utilizao dos mitos polticos como o de Tiradentes e

    seus companheiros, ou mesmo a memria do fausto colonial conferido pela auri sacra

    famis, faziam parte de projetos e posicionamentos polticos, no s por parte dos

    republicanos, estes diretamente interessados em identificar a sedio de Vila Rica comofundadora da Repblica. A nostalgia estampada na forma de discursos e poesias nos

    jornais tambm fazia parte da construo de tradies culturais regionais, de

    identidades, de supostas caractersticas inatas aos que viviam entre as alterosas,

    principalmente na regio diretamente ligada aos principais smbolos do passado

    79 A grafia dos do